Os caminhos tortuosos de “Fiéis de Deus”
Havia, e penso continuar a existir, na Vacariça uma área grande, quase toda de pinhal, a que chamamos e ainda chamam, por alguma razão que desconheço, de “Fiéis de Deus”. Ficava e ainda fica encostada à quinta, pertencente ao antigo dono das “Águas do Cruzeiro”, e paralela ao muro que a rodeia.
Na altura em que eu era jovem, havia lá só pinhal e caminhos acessíveis a carros de bois e pessoas a pé. Gostava muito de lá ir passear e também estudar, sobretudo anatomia, porque era um local sossegado, e dava para, nos intervalos, fazer exercício e correr e saltar de pedra em pedra para desanuviar, embora sujeito a cair e partir um osso.
À noite dormia melhor e sonhava com os saltos e corridas que por lá dava, quando era garoto. Eram sonhos agradáveis em que surgiam saltos enormes, passando por cima das casas em voos rasantes ou atingindo em altura as nuvens, que tentava afastar empurrando-as para desimpedir o caminho em direção às estrelas que me encantavam.
E quem encontrei por lá, também rodeado de nuvens e espantado? Bem, ao certo não sei quem era, por estar a coberto da neblina. Parecia a imagem de um homem muito alto, vestido de branco, com uma túnica que lhe cobria o corpo todo; tinha uma cabeleira vasta e barba enorme.
Envolvido como estava pelas nuvens, não pude observar bem as feições, embora me lembrassem um dos muitos Deuses que havia na antiguidade e que por qualquer modo foi para ali parar.
Falou, ou melhor dizendo, perguntou com voz de trovão: que andas por aqui a fazer, garoto? Fiquei atrapalhado por não contar com aquele encontro, não sabia o que responder-lhe. Acabei por dizer que andava a brincar, a fazer de passarito! Ele achou graça e recomendou, já com bons termos: isto não é local para garotos da tua idade andarem a brincar, é perigoso. Vai já para casa e com cautela, porque se te desequilibras e cais desta altura não escapas, vais desta para melhor.
A voz era autoritária e não tive outro remédio senão obedecer-lhe.
Ele ainda disse: mais tarde, ainda temos outras contas a acertar.
Continuei os meus voos, subindo e descendo até aterrar no local de partida. Entretanto acordei; estava só a sonhar, um sonho fantástico de quando era ainda garoto, turbulento e dado a aventuras.