Diretor: 
João Pega
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Diária

A arte de transformar a literatura em algo sem graça


terça, 10 dezembro 2024

Muitas vezes, de onde podiam florescerer mentes criativas e inquietas, brotam alunos que mais parecem robôs pré-programados. Vindos de um lugar que devia estimular interpretações pessoais e autênticas, mas que prefere esmagá-las com análises alheias.

A investigação vem-nos confirmando esta ideia: o modo como a Literatura é ensinada nas escolas já não permite que cada aluno formule as suas próprias conclusões e significados. Em vez disso, encontramos indivíduos que são forçados a engolir interpretações de livros cuja existência nem sequer conheciam. Que não pensam por si próprios. Que se esgotam na atividade monótona de anotar o que o professor ou o livro de apoio dizem. A originalidade e o pensamento crítico passaram para segundo plano, deixadas de lado por aqueles que se satisfazem com uma nota positiva na prova de Português. 

Ao coitado do professor resta adorar uma boa lista de respostas pré-determinadas. Que a personagem principal simboliza o conflito interno do ser humano, de uma forma que reflete a luta entre os desejos egoístas e a razão moral. E outras banalidades do género. Em aparência de criações genuínas da mente do aluno, e não do papaguear de noções que serve para tudo-e-mais-alguma-coisa. O pior: se o aluno se atrever a questionar a interpretação imposta, leva com o clássico "não foi isso que o autor quis dizer". Como se os autores fossem Deuses que entregaram os seus textos em pedra, com uma única interpretação correta para toda a eternidade. Como se um escritor, cuja Obra viu a luz do dia há mais de cem anos, não pudesse, de modo algum, estar aberto a múltiplas leituras - que o contexto histórico ou as experiências do leitor deviam enriquecer. 

É inevitável recordar “Clube dos Poetas Mortos”, um dos grandes clássicos do cinema. John Keating destaca-se como um professor que desafia a uniformização do pensamento e inspira os alunos a “sugar o tutano da vida”. Para ele, a Literatura não se reduz a uma simples lista de respostas certas e erradas: é um convite à reflexão, à ousadia e à exploração do potencial humano. Ao mesmo tempo, Keating denuncia, com mestria, o modo como o sistema educativo tradicional tende a esmagar qualquer faísca de criatividade - uma realidade a que nem mesmo os mais brilhantes se safam. 

As consequências deste aprisionamento intelectual são conhecidas. Aqui, ali e em todo o lado, não mais vemos do que chavões, lugares-comuns e o recurso a bengalas que se tornam quase num eco vazio. Forçar interpretações rígidas transforma o ensino numa espécie de corrida: quem acertar na resposta mais comum, visitada e gasta, ganha os pontos. Daí, nasce também a redundância vocabular, a lástima argumentativa, a monotonia discursiva e um sem-número de malefícios.

A liberdade crítica grita por um pouco de espaço. Clama pelo momento em que o aluno olha para um texto e se sente capaz de o debater, de trocar ideias sobre ele e até de ter uma opinião que choque com as demais. A Literatura tem de estar viva - não como um manual de instruções, mas como uma Arte. Num mundo sem certezas, lanço uma hipótese: talvez, e só talvez, seja hora de abrir as janelas e deixar entrar um pouco de ar fresco no ensino literário. Antes que comece a cheirar a mofo.