Uma pena que assim seja
Tem o seu quê de engraçado. A forma como as pessoas, à boleia das redes sociais, interagem, partilham as suas “vidas” e constroem as suas “identidades” - “vidas” e “identidades” entre aspas. Com quilos de edição, poses meticulosamente ensaiadas e ângulos que fazem desaparecer os traços menos apreciados pela sociedade, transformamo-nos em versões polidas daquilo que, no fundo, estamos condenados a ser para todo o sempre: humanos, com olheiras, alguma celulite e aqueles cabelitos marotos que nunca ficam no lugar.
A imagem pessoal está no centro de toda a questão. Ou melhor, as imagens pessoais: a do Instagram, a do LinkedIn e a do X, cada qual com a sua identidade, a sua versão do “eu”. As próprias plataformas sociais ajudam a este propósito. Com dois ou três cliques, temos acesso a uma série de ferramentas que nos transformam hoje em modelos de alto gabarito, amanhã em comentadores de geopolítica e noutro dia, quem sabe, doutorados em tudo-e-mais-alguma-coisa. Uns minutinhos e pumba: somos tudo aquilo que não somos, mas também tudo aquilo que desesperadamente gostaríamos de ser.
A má notícia, caro leitor, é que nem tudo na vida são seguidores e reações de coraçãozinho. Chega a noite e, quando nos olhamos ao espelho, já num momento offline, a vida continua. Sem que o João tenha deixado de ser o João e sem que a Maria passasse a ser a Joana. Nus e crus, sem o escudo do username pipi e da meia dúzia de fotos estilosas que publicámos durante o dia. Mas creio que o problema pode ser mais profundo: a era digital enfiou-nos num estado de constante comparação. Numa competição ininterrupta pelo prémio de “melhor vida”, uma coisa que nem sequer existe. Investimos no aperfeiçoamento de um chorrilho de fotos com sorrisos perfeitos, em cenários perfeitos, com filtros que escondem todo e qualquer desvio, para nos compararmos a… outras “vidas” igualmente perfeitas - mas não menos falsas.
Claro, quando a bateria do smartphone acaba, desaparece o mundo cor-de-rosa em que estávamos embrenhados. De volta à realidade, o cabelo torna a rebelar-se, a pele ganha textura e não há filtro que nos salve. Deixamos de ser atores nesse grande palco online em que, dia após dia, assumimos um dos quantos papéis engraçados que nós próprios criámos. Em enredos tão fantasiosos que, volta e meia, nem sequer os nomes a que respondemos refletem a realidade do nosso Cartão de Cidadão.
É o segredo mais mal escondido do mundo: se falhamos em ser felizes 24 horas por dia, 7 dias por semana, ou se o reflexo no espelho não combina milimetricamente com a versão que publicámos online, a nossa autoestima vai por aí abaixo. E com isso, amigos, um sem-número de outros problemas vem ao de cima.
Uma pena que assim seja.