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"Os alcatruzes da Política"


segunda, 01 abril 2024

Eu era um cachopito quando li no Jornal da Mealhada um artigo de opinião que se chamava ‘Os alcatruzes da Política’. Eu não sabia o que era um alcatruz e, por ter o privilégio de estar em contacto direto com o autor do artigo, com a destreza de quem nada tem a temer, perguntei-lhe o que era isso, o que era um alcatruz.

A verdade é que com a explicação, na minha cabeça de cachopito, a imagem do alcatruz passou a estar intimamente e quase imediatamente ligada à ideia da Política. Como se a imagem do alcatruz passasse a ser, ela própria, uma definição da Política.

Mas o que é, afinal, um alcatruz?

Ora um alcatruz é o recipiente que está acoplado a uma grande roda que permite tirar água de um poço através de uma nora. Os alcatruzes da roda são submersos, enchem-se de água, sobem trazendo a água, até verterem o líquido e iniciarem uma rota descendente que os leva a nova imersão.

Como na Politica, os alcatruzes estão, sequencialmente, imersos e emersos, consecutivamente em baixo e em cima, alternadamente cheios a ser veículo de Serviço e vazios em preparação para nova missão. Esta fatal dualidade, esta necessária alternância é, então, definitória, por um lado, da fragilidade do poder – nunca nenhum detentor de missão pública pode achar-se intocável ou invencível –, e por outro lado, da noção do Tempo e das necessidades de cada posicionamento.

Na tradição clássica, conta-se que na apoteose de uma vitória, na glorificação de um grande feito, havia um escravo que tinha a missão de sussurrar ao ouvido do vitorioso a frase ‘Memento mori’ – lembra-te que és mortal, em tradução livre –. Numa visão mais portuguesa, e numa fase em que assistimos à transição de um novo parlamento nacional, de um novo Governo da Republica e de novas maiorias e minorias fará sentido lembrar aos que imersos cumprem a missão de que Serviço de que são mortais, e de que estão obrigados a cumprir, mas também aos que estão emersos e vazios, de pernas para o ar, de que têm de se preparar para estar prontos quando nova missão lhes for solicitada.

Em Democracia, ser poder e ser oposição são condições igualmente importantes.

Nem o poder deve ter a soberba de considerar que nunca falha, nunca se engana, nunca erra. De que o seu adn foi divinamente construído para a perfeição imaculada.

Nem a oposição deve posicionar-se numa circunstância de apenas criticar, censurar, julgar ou contrapor o que é feito pelos outros. De que cumpre apenas quando destrói e provoca demissão.

Mas a ambos temos de exigir articulação, construção e, acima de tudo, Serviço.

Provavelmente é muito mais difícil ser oposição do que ser poder. Da oposição exige-se, simultaneamente, que se oponha e que construa. Mas sempre que critica será dito que só sabe dizer mal e que é pelo ‘bota-abaixo’. Sempre que a oposição não criticar, sempre que apresente uma alternativa ou que dê o seu conselho e assentimento a qualquer opção executiva, dir-se-á que está a lançar passadeiras vermelhas e numa situação colaboracionista. Se o líder da oposição falar a uma só voz dir-se-á que é um déspota. Se houver vários interlocutores vai dizer-se que ‘ninguém se entende’.

Falta, ainda, muita maturidade política aos eleitores e aos eleitos que em permanente roda – como a dos alcatruzes do poço – ora acham que tudo está mal, ora consideram que nada deve ser mudado. Ora querem uma oposição que se entenda com o poder, ora querem um poder que seja coartado pela oposição. “Eles deviam era entender-se uns com os outros” e ao mesmo tempo “esta oposição não existe e ninguém os pára!”

 

Anos depois, já menos cachopito, percebi que também se chama alcatruz ao vaso de barro com o qual, em armadilha, se apanham os polvos. Como que a ensinar-me que também na Politica há armadilhas. Também há ações e posicionamentos, que como nesta dualidade de significados para uma mesma palavra, são ardis e armadilhas para caminhos tortuosos que visam interesses obscuros.

Dualidades que nos obrigam a estar atentos. Dualidades que nos impelem a ter a consciência de que nunca podemos deixar de nos questionar, de nos auto-avaliar, de evitar seguir pela aparência como caminho mais fácil.