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João Pega
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Diária

Ser livre para sonhar…


quarta, 18 novembro 2020

Há dias, ao tomar café, alguém me falava sobre o artigo anterior, escrito para este jornal, e dizia-me:

 

- Já não tenho idade para sonhar…! Essa coisa dos sonhos já não tem muito sentido na minha idade! Não acha?

 

Simpaticamente, não hesitei em responder-lhe de forma direta:

 

- O problema da senhora não está no sonho, mas na liberdade.

 

Confesso que me olhou com estranheza, ou pela minha ousadia de como lho disse ou por não ter entendido logo o que lhe queria dizer. Por isso, repeti a ideia de outra forma.

 

- Aquilo que nos impede de sonhar é o facto de não sermos livres. Como em tudo, a liberdade tem o preço alto e preferimos não sonhar a pagar o preço da liberdade que nos permite fazê-lo.

 

Ela, então, sorriu, querendo dizer-me que já me tinha entendido, e, brevemente, começou a falar, com alguma emoção e num tom de voz baixinho, daquilo que estava refém e a impedia de ter sonhos.

 

Estou convencido que, hoje, deixamos de sonhar quando perdemos a grandeza e a beleza de sermos livres. Na verdade, a liberdade humana não pode ser compreendida só como a capacidade de escolher, diante de uma série de possibilidades. Não é a faculdade de eleger ou de se decidir por “esta coisa” ou por “aquele caminho”. É mesmo urgente passar de um horizonte de compreensão da liberdade como “faculdade de escolha” para uma “faculdade de ser”, isto é, a liberdade tem a ver com a maneira única de cada um está na vida e como vive, com verdade do que é, sem medos nem máscaras, procurando sempre a felicidade que anseia.

Ser livre é ter, na vida, a atitude de quem pode dispor de si, tendo em vista a sua felicidade. É a pessoa que se decide por si mesma com olhos voltados para um fim, bom e feliz, mesmo que não seja imediato e instantâneo. A liberdade não é de todo a capacidade de fazer o que eu quero, mas a busca de ser “eu próprio”, com a minha identidade e história pessoais, no melhor que sou capaz e na bondade que me habita.

Uma pessoa livre tende sempre para o bem maior e melhor, para ser feliz. Claro está, que a felicidade de alguém não acontece pronta, no imediato, nem nunca está acabada e jamais pode ser fabricada. A felicidade é aquilo que cada um, livremente, vai assumindo no seu ser como um projeto, uma função, uma tarefa. Por isso, todos e cada um de nós somos “seres-a-caminho”, numa construção permanente e constante. A felicidade de uma pessoa nunca é uma realidade concluída, mas uma transformação intensa, por vezes, até dolorosa, onde, com liberdade, se escolhe o amor e renuncia ao desamor.

Há um outro aspeto determinante, a liberdade não permite delegar aos outros a capacidade de responder por mim e assumir as consequências dos meus atos. A liberdade implica, em responsabilidade, a capacidade intransferível de dar resposta. Uma liberdade sem responsabilidade acaba por se converter numa pura formalidade vazia de conteúdos. Uma liberdade sem orientação, horizonte, finalidade, desprovida de norte, de sentido, de responsabilidade, é uma falácia, é um estado de viver “vagabundo” e “vitimizando-se” da pouca sorte, esmagado por frustrações e fracassos.

A verdadeira liberdade orienta-se sempre em direção ao ser mais e melhor pessoa. Quanto mais livre é uma pessoa, mais é capaz de dispor de si, mais é capaz de amar, mais capacidade tem de sonhar e fazer dos sonhos vida real. Somente pode sonhar quem se possui a si mesmo, no amor e livremente, não sendo refém de nada nem de ninguém, mas abrindo-se aos outros e à novidade, na construção da sua história.

 

Já agora, “querer” só “é poder” de felicidade, fazendo a experiência da liberdade, na relação. Sim! Só se é verdadeiramente livre quando o sonho felicidade de uma pessoa reconhece, protege e promove o outro, no e com amor. Aliás, o amor é o sinal, o fundamento e a finalidade da liberdade, para além de tornar reais os sonhos, distinguindo-os das ilusões e fantasias. Quanto mais uma pessoa dispõe de si, entregando-se aos outros, por amor, mais livre e disponível se torna e mais reais se tornam os seus sonhos. Jamais alguém é livre e é feliz autoafirmando-se, egocêntrica e arrogantemente, mas reconhecendo a sua vida como dom, como oferta gratuita, chamada a desprender-se de si e doando-se por amor no serviço dos outros.